quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

:: manhã, tão bonita manhã!


e não é que essa cidade hoje amanheceu assim?

parecia o tempo em que acordava cedo somente pelo batido da tampa da cuscuzeira, pelo tossido de seu edmundo e pelo gritar do menino do leite que vinha da rua de pedra portuguesa. nem sei o porquê de tanta gritaria, ele tinha menos leite que compradores. mas o fato é que até mesmo o céu parecia com o céu daquela cidade do interior. e, se não me engano, o cheiro parecia com o de lá.

então me senti de férias. levantava cedo já pensando em chupar picolé de coco na calçada do vizinho da frente, que fazia sombra. que saía pelas ruas sem deixar minha mãe preocupada. que passava quase um mês sem ver meu pai, que estava trabalhando no quartel em recife – onde morávamos.

e a mais estranha das sensações, eu senti também. vi que, com quase trinta anos, não passava de uma criança acordando. e não mais um adulto porque, a partir desses tempos dona morena e seu edmundo já tinham partido.

mas o cheiro...

era cheiro de maruim. descobri logo. sei lá que cheiro era aquele. canavial pegando fogo, boiada desfilando na calçada, era o orvalho evaporando. nem sei. nem sei mesmo.

lembrei que pedia a benção a meus avós, que chamava de vó e vô. e que também pedia à minha mãe. dissimulado! não pedia o ano todo mas, nas férias, na presença de minha vó morena, devota do apostolado do sagrado coração de jesus, não tinha como evitar ou esquecer. já meu avô não fazia tantas exigências, era devoto das ruas, das caminhadas pela pequena cidade acenando pra quase todo mundo, pois conhecia quase todo mundo.

seu edmundo era chamado só de vô mesmo. poderia ser vô edmundo, vô mundo, vô mundinho. mas não era um vô especificado, porque só tinha ele mesmo. o pai de meu pai já havia partido há muitos atrás, quando ele – meu pai – ainda era uma criança. mas bem criança mesmo.

esse meu avô era um barato. aliás, só tinha ele mesmo, não é? mas, ainda assim, era um barato. roubava no buraco, brigava com um filho que bebia e queria que a gente comesse uma bacia de comida na hora do almoço. pense em uma pessoa que ficava feliz quando comiam em sua mesa! e à tarde ligava seu radinho de pilha para ouvir maruinense contra itabaiana. lembro que usava chapéu na cabeça careca de tão calvo e uma carteira de cigarro no bolso da camisa de botão. mas pouco via meu avô.

já dona morena, de nome petronila, via todo dia. foi dela que minha mãe herdou aquele olhar, digamos, amedrontador! pessoa forte, conservadora. coisa engraçada que lembro nela é que não acreditava piamente que o homem tinha ido à lua. imaginem só! adorava assistir os programas do silvio santos, jogar buraco, apesar das trapaças de seu edmundo e brigar com os vilões das novelas. e como gostava também de ir à igreja! quase esqueço. muitas vezes fiquei com raiva porque era dura na educação e perpetuação dos bons modos. que raiva que nada! um dia antes de partir, ainda lembro, sentada na sala de minha casa, abracei-a sem que visse, pelas costas. foi fazer exames de rotina e não mais voltou lá pra casa. nem pra maruim. só para perto de nós. só.

ah, essa minha vó morena sempre me emociona. pior que nem toquei a ave maria de bach e gounod na missa, no órgão da igreja matriz. ela me cobrava as aulas de piano pra que eu realizasse esse sonho pra ela. não deu. um ingrato!

mas hoje deu vontade de beber água de purrão, com gosto de barro! era água de chuva, sempre geladinha do frio da noite. e geladinha mesmo era a água do chuveiro. nunca a resistência estava funcionando. como sofria! e tomava banho no quintal, na lavanderia de alvenaria, protegida por um tapume improvisado com restos de telhas de amianto. deu vontade de brincar com os azulejos velhos e quebrados que ficavam mais ao fundo do quintal. nem sei o porquê brincava horas com aquilo. brincava também de descobrir coisas na casa. tinha muita coisa guardada. mas muita mesmo!

manhã danada essa, viu? que coisa, menino. levantei pra tomar banho e ir trabalhar e o cheiro e o céu me lembrou aquela cidade de minhas férias na infância. estranho, já amanheci tantas vezes aqui e nunca me vieram essas lembranças. na verdade, acabo me lembrando de muitas outras coisas, que levariam muitos e muitos parágrafos. e seria um prazer pra mim, mas não tenho tempo. estou no trabalho agora. e estou no trabalho agora porque vim me tornando um cidadão de bem, desde a época de maruim, desde que havia ainda uma certa inocência, desde a época do respeito, das bênçãos e dos corretivos. sou sim dessa época.

foi assim que o dia me amanheceu hoje. nostálgico, perfumado e cheio de recordações.

talvez um dia, distraidamente, eu quis sim, mas... ah, como eu queria que aquela maruim não acabasse...


[palavras sobre um dia de sorte em minhas lembranças 14.02.08]

7 comentários:

Thaís Vieira disse...

Menino... como é difícil me fazer chorar... Mas vc conseguiu... aliás, vc não, as lembranças... Lembro de tudo isso também de vez em quando, mesmo sem sentir o cheiro quando acordo. São nesses momentos que percebemos que a vida real é dura e que tudo que é bom acaba rápido, muito rápido mesmo, mais rápido do que o tempo necessário para darmos valor ou percebermos que um dia sentiremos tanta falta... Espero que esteja tudo bem por aí. Bom fim de semana.
Bjiños,
Thaís.

Wallace (NEDL) disse...

Obrigado pelos momentos de sua nostalgia... um pouco da minha foi, pois estou a muito longe dos de sangue que tanto amo...

Lindíssimo... Parabéns...

Claudine Maia disse...

Nossa, Thiago!!!!

Sem ser piegas, quase chorei com seu texto. Isso porque a medida que fui lendo, as imagens bem parecidas com as do texto me vieram a mente me lembrando a cidade natal de minha mãe – Santa Bárbara - para a qual eu sempre ia quando criança. Embora eu odiasse tomar leite com nata e ter que comer o máximo de comida que eu agüentasse, senão meu tio (que funcionava meio que como um avô) ficava triste, hoje vejo que era uma época feliz e pura (como o leite com nata). Sem falar nas bananas depois do almoço. Entretanto, a sensação que tenho hoje é diferente. Sinto saudades daquela época, mas aquela siriguela que eu mesma tirava do pé, quando subia com meus primos na árvore da casa de vó Lina (vó deles compartilhada comigo e já falecida), já não tem o mesmo gosto. Nem para mim, nem para eles, pois outro dia conversamos sobre isso. E o pior de tudo é constatar que o pé de siriguela é o mesmo. Mas nós...

Íldima Lima disse...

Tenho poucas recordações interioranas, só de quando ia para uma prainha desconhecida (Saubara), ou quando ia para a ilha no verão....mas mesmo assim, essa melancolia poética de vocês me deixou assim...remexida!

Sensações e sentimentos!

Muito belo!

bjs

Luciano Oliveira (English Teacher) disse...

Rapaz... você me fez lembrar da minha infância. O texto está “great”. Parabéns!

Wine Nécia (VIVO) disse...

Amigo,



Uma boa infância, sempre tem fatos inesquecíveis. A sua foi!!!!!

P.S Li todo texto, e viajei também na minha infância. Casa de vó e vô, brincadeiras...... não tinha picolé, mas o pãozinho vendido pela manhãzinha...

Um cheiro

Kika Salomão disse...

Caraca.
Tá mandando bem nos textos.. super lindos e inteligentes, como de costume
Me orgulho de ser sua amiga!!!
Bjs amo vc Thi.
Kika