segunda-feira, 6 de outubro de 2008

:: irresponsáveis, divertidas e funcionais


conheço alguém que toma conta de suas tristezas.
trata-as com carinho.
ouve, compreende, repreende, bota no colo, embala...
deixa-as crescer dentro de si.
rega, protege do sol, do frio, do vento.
isso porque crê que todo sentimento vale a pena ser cuidado.
só que para ela, há um espaço muito curto ente a chegada da tristeza e sua partida.
tem umas que ficam. outras que se vão.
tudo faz parte de um processo irresponsável, divertido e... funcional.
porque é ela quem escolhe as que ficam e as que vão.
as que ficam são as que “valem a pena”, segundo suas próprias palavras.
são as que constroem, fazem crescer, amadurecem.
essas passam por uma metamorfose e viram um eufemismo: aprendizados.
as outras – as que se vão – somente terão atenção às dezenove. dezenove horas. e não a sua atenção.
é a hora proclamada para descansar das outras tristezas.
hora eleita para dormir e deixar que o mundo tome conta.
das tristezas ruins. que somente correm, maltratam e puxam a barra da saia.
essas ela deixa por aí, à toa, perdidas. sem dó nem piedade.
e o mundo que tome conta. e quem quiser que pegue pra arrimo. ou que peguem para o que quer que seja.
é engraçado por isso.
eu tenho me desviado de algumas. porque durmo depois das dezenove. quase sempre.
vai ver outras têm o mesmo hábito dela e deixam suas “tristezas ruins” por aí, vagando.
sei que são muitas. e sou capaz de bater-papo com algumas que não são minhas antes de dormir. e comprovo que, por serem fúteis, merecem o destino que seus ex-donos lhes deram.
mas tenho evitado. isso me preocupa. não posso me consumir com isso.
e ela - a pessoa - dorme, sonhando seus eufemismos.
e amanhã, inocentemente, faz tudo de novo: transforma suas tristezas em seres efêmeros, cujo ciclo de vida corresponde às horas que passam entre seu acordar e adormecer.
caso a encontrem depois das dezenove zanzando por aí, tenha absoluta certeza: não há tristezas ruins.
somente as suportáveis.
irresponsáveis.
e divertidas.

e porque não, funcionais?

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

:: sem aviso

quem me viu
sambando, alegre, cantando,
não sabe que o danado destino
em voltas com arte de menino
aprontou com o meu coração.
na avenida da vida,
trocando passos no compasso
do eco das cordas de mil cavaquinhos
meu povo festejando e eu rindo sozinho
quando me dei sumiço na multidão.
e lá vinha entrando:
camisa regata, listrada,
vinco na calça branca passada,
apresentando a nova namorada,
a grande musa do seu samba-canção.
lá vinha o boêmio
de mãos dadas com a mulata
que rodava a saia de cima do salto,
pisando meu peito deitado no asfalto,
meu choro cantado num triste refrão.

era ela, a deusa da minha vida
que na derradeira despedida
tolo, achei que me fosse voltar
era ela, a causa da minha dor
para quem compus meu amor
chegou sem a ninguém avisar.

[demorei, né, dani? mas está aqui a primeira tentativa de fazer meu samba. vou musicar...]

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

:: manhã, tão bonita manhã!


e não é que essa cidade hoje amanheceu assim?

parecia o tempo em que acordava cedo somente pelo batido da tampa da cuscuzeira, pelo tossido de seu edmundo e pelo gritar do menino do leite que vinha da rua de pedra portuguesa. nem sei o porquê de tanta gritaria, ele tinha menos leite que compradores. mas o fato é que até mesmo o céu parecia com o céu daquela cidade do interior. e, se não me engano, o cheiro parecia com o de lá.

então me senti de férias. levantava cedo já pensando em chupar picolé de coco na calçada do vizinho da frente, que fazia sombra. que saía pelas ruas sem deixar minha mãe preocupada. que passava quase um mês sem ver meu pai, que estava trabalhando no quartel em recife – onde morávamos.

e a mais estranha das sensações, eu senti também. vi que, com quase trinta anos, não passava de uma criança acordando. e não mais um adulto porque, a partir desses tempos dona morena e seu edmundo já tinham partido.

mas o cheiro...

era cheiro de maruim. descobri logo. sei lá que cheiro era aquele. canavial pegando fogo, boiada desfilando na calçada, era o orvalho evaporando. nem sei. nem sei mesmo.

lembrei que pedia a benção a meus avós, que chamava de vó e vô. e que também pedia à minha mãe. dissimulado! não pedia o ano todo mas, nas férias, na presença de minha vó morena, devota do apostolado do sagrado coração de jesus, não tinha como evitar ou esquecer. já meu avô não fazia tantas exigências, era devoto das ruas, das caminhadas pela pequena cidade acenando pra quase todo mundo, pois conhecia quase todo mundo.

seu edmundo era chamado só de vô mesmo. poderia ser vô edmundo, vô mundo, vô mundinho. mas não era um vô especificado, porque só tinha ele mesmo. o pai de meu pai já havia partido há muitos atrás, quando ele – meu pai – ainda era uma criança. mas bem criança mesmo.

esse meu avô era um barato. aliás, só tinha ele mesmo, não é? mas, ainda assim, era um barato. roubava no buraco, brigava com um filho que bebia e queria que a gente comesse uma bacia de comida na hora do almoço. pense em uma pessoa que ficava feliz quando comiam em sua mesa! e à tarde ligava seu radinho de pilha para ouvir maruinense contra itabaiana. lembro que usava chapéu na cabeça careca de tão calvo e uma carteira de cigarro no bolso da camisa de botão. mas pouco via meu avô.

já dona morena, de nome petronila, via todo dia. foi dela que minha mãe herdou aquele olhar, digamos, amedrontador! pessoa forte, conservadora. coisa engraçada que lembro nela é que não acreditava piamente que o homem tinha ido à lua. imaginem só! adorava assistir os programas do silvio santos, jogar buraco, apesar das trapaças de seu edmundo e brigar com os vilões das novelas. e como gostava também de ir à igreja! quase esqueço. muitas vezes fiquei com raiva porque era dura na educação e perpetuação dos bons modos. que raiva que nada! um dia antes de partir, ainda lembro, sentada na sala de minha casa, abracei-a sem que visse, pelas costas. foi fazer exames de rotina e não mais voltou lá pra casa. nem pra maruim. só para perto de nós. só.

ah, essa minha vó morena sempre me emociona. pior que nem toquei a ave maria de bach e gounod na missa, no órgão da igreja matriz. ela me cobrava as aulas de piano pra que eu realizasse esse sonho pra ela. não deu. um ingrato!

mas hoje deu vontade de beber água de purrão, com gosto de barro! era água de chuva, sempre geladinha do frio da noite. e geladinha mesmo era a água do chuveiro. nunca a resistência estava funcionando. como sofria! e tomava banho no quintal, na lavanderia de alvenaria, protegida por um tapume improvisado com restos de telhas de amianto. deu vontade de brincar com os azulejos velhos e quebrados que ficavam mais ao fundo do quintal. nem sei o porquê brincava horas com aquilo. brincava também de descobrir coisas na casa. tinha muita coisa guardada. mas muita mesmo!

manhã danada essa, viu? que coisa, menino. levantei pra tomar banho e ir trabalhar e o cheiro e o céu me lembrou aquela cidade de minhas férias na infância. estranho, já amanheci tantas vezes aqui e nunca me vieram essas lembranças. na verdade, acabo me lembrando de muitas outras coisas, que levariam muitos e muitos parágrafos. e seria um prazer pra mim, mas não tenho tempo. estou no trabalho agora. e estou no trabalho agora porque vim me tornando um cidadão de bem, desde a época de maruim, desde que havia ainda uma certa inocência, desde a época do respeito, das bênçãos e dos corretivos. sou sim dessa época.

foi assim que o dia me amanheceu hoje. nostálgico, perfumado e cheio de recordações.

talvez um dia, distraidamente, eu quis sim, mas... ah, como eu queria que aquela maruim não acabasse...


[palavras sobre um dia de sorte em minhas lembranças 14.02.08]